segunda-feira, 27 de junho de 2011

O dicionário, segundo minha mãe. E meu pai também. Parte 3

A minha genitora, por incrível que pareça, também era criadora de vocábulos. Foi ela quem criou o verbo “limirar”. Perto de minha casa (se é que podia chamar aquilo de casa) havia uma senhora chamada Limira, que era muito bisbilhoteira e pidona. Sempre que alguém comia algo perto dela, ela ficava olhando e, ás vezes, pedindo um pouco daquilo. Assim, quando a gente olhava com insistência alguém comendo, ou ficava de olho em qualquer coisa de comer, minha mãe logo dizia: “Pára de limirar, minino! Que coisa mais feia! - Cê nunca viu trem de comer, não”?  Trem de comer! Meu Deus! Que coisa mais original; que trem mais mineiro! E como é gostoso um trem de comer! Quanto menos trem de comer a gente tem, mais gostoso ele fica. 

Frequentemente, de manhã, ela falava assim: Vou dar um jeito de fazer um “tirijun” pro ceis. O tirijun dela seria tira-jejum ou desjejum, como dizem as pessoas finas e farturentas. Como nunca havia o material completo para um bolo, pois faltava ovo, ou leite, ou farinha de trigo, ou faltava tudo, ela fazia angu-doce, ou morimbo, que era um fubá comum cozido, sem nada junto. O angu-doce não tem segredo, era apenas angu com açúcar. Ou às vezes a gente comia farinha com açúcar, ou não comia nada e ficava tudo bem, conforme Deus determinava. A gente nunca comia mexido pela manhã porque nunca sobrava comida do dia anterior, quando tinha, é claro. Se sobrasse, perderia, pois não havia geladeira pra conservar.

Quase toda criança gosta e faz parte de uma turminha. Eu, quando criança e adolescente, não fugia à regra. Como eu era o mais estudioso, ou melhor, o menos burro, exercia uma pequena liderança sobre os demais. Mesmo assim, meus pais não gostavam de me ver enturmado com pessoas que poderiam me desencaminhar, tendo em vista a turma ser muito levada e o ambiente propício de bairro muito pobre. Assim, meus pais chamavam minha turma de ganga ou de culundria.  Ganga, tudo indica que seja gang; culundria me dá a impressão que eles queriam dizer quadrilha. Aliás, tenho certeza de que era isso mesmo. Ainda bem que eram só arroubos juvenis, traquinagens sem nenhuma conseqüência e sem manutenção de nenhum hábito pernicioso. Tenho tanta aversão a quadrilha e gang que nem político eu tive coragem de ser.    

Vez ou outra ela mandava um ou outro filho fazer alguma tarefa que o mesmo não queria. Assim, o desobediente inventava uma desculpa qualquer para se eximir da obrigação, ao que ela respondia: “Pára de arrumar sacrafúgio, menino”! , querendo dizer “pára de inventar subterfúgio ou desculpa”. Quando ela dizia alguma coisa que a gente discordava, até por já estar sabendo mais do que ela, logo ela dizia que a gente tinha a mania boba de botar “bistaque” em tudo o que ela falava. Traduzindo o “bistaque” dela para o português correto, vamos encontrar o vocábulo obstáculo, cujo significado todo mundo conhece. Até que ela sabia o significado das palavras e a hora certa de usá-las;  só não conhecia a grafia correta.
                             Continua dentro de alguns dias.

Nenhum comentário:

Postar um comentário