segunda-feira, 20 de junho de 2011

O dicionário, segundo minha mãe. E meu pai também. Parte 2

Abusando mais um pouco da paciência dos leitores, não posso deixar de recordar das pescarias que fazia com meu pai, lá na Cazanga. Era só começar armar chuva que ele já dizia: “Vamo imbora qui tá vino uma currumaça de chuva”. Imagino que ele queria dizer que ia cair um calhamaço de chuva, ou seja, ia chover muito, uma vez que tal vocábulo significa, entre outras coisas, grande volume, mas de papel em forma de livro. Não chamam um livro grosso de calhamaço?! Ou então, meu pai dizia: “vai caí uma canca de chuva”, querendo dizer pancada de chuva. Meu pai, sendo analfabeto, não podia ser nenhum filólogo, mas tinha um “extenso” vocabulário. Só não sabia pronunciar.

De vez em quando, depois de muita insistência de nossa parte, meu pai ou minha mãe deixava a gente sair. Mas, raramente deixavam de fazer uma habitual advertência: “não delata, não”, se delatá, vai apanhá”!  Com isso eles queriam dizer “não demora”, “não dilata o tempo”. Ou mesmo “vá, mas não me traia; não faça nada errado”. Pois, delatar significa trair, denunciar, etc. Foi o que Joaquim Silvério dos Reis fez com Tiradentes e seus companheiros e Judas Iscariotes fez com o mestre Jesus. Alguns pedreiros gostam muito de dizer que “a laje delatou; a parede delatou; houve uma  delatação”, enquanto querem dizer que a parede dilatou (trincou), a laje dilatou ou houve uma dilatação(abertura).

Eu sou um péssimo ciclista. Todo desengonçado. Sabem por quê? Por que nunca possuí uma bicicleta. Aliás, em matéria de diversão, não tínhamos nada. A gente nunca ganhava brinquedo.  Em todos os natais meu pai falava a mesma coisa: “Este ano eu não posso dar nada a vocês, mas no ano que vem eu dou”.  No ano seguinte era a mesma ladainha. A gente já sabia de cor. Ademais quando a gente conseguia uma bicicleta emprestada, meu pai não deixava a gente andar, e dizia assim: “Cuidado com esse treim, que isso vai dispingolar morro abaixo e não vai parar!” Na verdade, ele estava dizendo que a bicicleta ir disparar na descida, sair fora de controle, ou seja, degringolar.


Voltando à minha mãe, lembro-me também de quando a gente fazia alguma estripulia, ela dizia, “injirizada”, mais ou menos assim, porém mais severamente: “Ah, menino, quando seu pai chegar você vai apanhar a riviria”. Ao mesmo tempo em que ameaçava, ela dizia que quando o pai chegasse a gente ia levar uma baita surra, ou seja, ia apanhar à revelia, sem saber por quê. E não é que apanhava mesmo! Naquele tempo a gente apanhava, de verdade, às vezes até sem merecer ou não merecendo tanto. E eu não cultivo nenhum rancor por isso. Ao contrário, agradeço as carraspanas que meu pai me passava, às vezes até bem maiores do que a traquinagem cometida. 
Continua dentro de alguns dias. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário