terça-feira, 14 de junho de 2011

O Dicionário, segundo minha mãe. E meu pai também. (Parte 1)

Ao recordar o passado, da infância principalmente, lembro-me muito bem de minha mãe e das coisas que ela dizia. Minha mãe era uma mulher pequena, doente, pobre e analfabeta. A única cultura que ela conhecia, eram as plantações de que ajudava a cuidar desde criança, na propriedade de seu pai, meu avô, um carrasco segundo ela, que gostava de subjugar os filhos no trabalho, não importando a idade.  Parece-me que parte de sua doença surgiu daí. Entretanto, ela tinha uma cultura humana maravilhosa, representada pela dignidade, humildade e caridade.

Minha mãe era muito caridosa. Ela dividia o que a gente não tinha com os vizinhos que tinham menos ainda. Apesar de que era quase impossível encontrar alguém que tivesse menos do que nós. Mas, vez ou outra a gente se deparava com um mais desprovido, mais necessitado, pelo menos naquele momento. Foi com ela que aprendemos a não querer os bens só para nós. Aprendemos a dividi-los mesmo não sendo muitos. Graças a Deus somos uma família constituída de pessoas pobres, porém não egoístas, que não se furtam ao dever de ajudar os menos favorecidos.

Estas belas recordações trazem à minha mente as palavras que ela usava para identificar as atitudes e os gestos dos filhos. Eram palavras toscas, com o som e grafia errados, mas todas tinham muito fundo de verdade e retratavam a realidade que ela sabia expor, com aquela tosca sabedoria inerente aos incultos academicamente. Hoje em dia, levado pela curiosidade e capacidade de entendimento, eu tento traduzir, auxiliado pelo pai dos burros, a singeleza das palavras que ela e meu pai diziam. Parece que ainda sinto tais palavras ecoando em minha mente e no meu coração.

Por exemplo, quando a gente se aproximava dela indevidamente, inconvenientemente, ela, irritada, dizia: “Sai pra lá, mutrêco”! Ninguém entendeu, né? Nem eu entendia. De uns tempos para cá é que estou sabendo de que ela estava nos xingando. Ela queria dizer “monstrengo”, ou seja, coisa feia, disforme, de má aparência, ou coisa de sentido semelhante. Tem sentido, não tem?  Dizem por aí que para a mãe não existe filho feio, mas dependendo do estado de espírito dela e da peraltice que o pimpolho pratica, um majestoso príncipe vira um repelente sapo. Uma mãe, por muito boa que seja, também perde a paciência, principalmente quando vive na escassez, para não dizer miséria.

Uma outra palavra que ela falava quando a gente chegava perto dela com um objeto qualquer na mão, atrapalhando suas atividades: “Sai com esse estrandaco pra lá, menino”! Sabem o que ela queria dizer com tal palavra? Eu sei! Ela estava se referindo a estandarte, que significa, entre outras coisas, aquela bandeira que a “Porta Estandarte” conduz nos desfiles carnavalescos. Estrandaco passou a significar uma armação rude de madeira que facilita um acesso ou um trabalho em locais mais altos. Um andaime, desses que fazem na construção civil, é um “estrandaco”.  Durante muito tempo eu pensei que estrandaco era uma indaca dela, e de meu pai também.  

Como naquele tempo não havia fogão a gás, o nosso fogão era a lenha, é claro. Também, pra quê fogão se não tinha o que cozinhar? A minha mãe mandava a gente buscar gravetos nos matos próximos de casa para acender o fogo. Ela dizia assim: “Minino vai buscá graveto pra pispiá o fogo”. Com tal palavra estranha ela queria dizer principiar ou iniciar o fogo, o que hoje se faz na maior facilidade, com álcool. O fogão a lenha hoje é luxo, é charme, é elegante. Gozado, que naquele tempo a gente já tinha equipamento de luxo e nem sabia. Aliás, naquele tempo eu comia broto de bambu por necessidade, hoje, graças ao bom Deus, como para variar o cardápio.
Continua dentro de alguns dias.

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